Viver com doença de Behçet: Conheça os
testemunhos reais de quem sofre desta doença
Já parou para pensar como é lutar todos
os dias contra uma doença crónica, rara e incompreendida que pode afetar
qualquer sistema do seu corpo?
Na doença de Behçet (DB), o sistema
imunológico do paciente, ao contrário do que se costuma julgar, não traduz uma
falta de defesas do organismo mas antes um excesso da sua actividade. O sistema
imunitário, que normalmente protege o corpo contra infecções, produzindo inflamações
controladas, torna-se hiperactivo e passa a produzir inflamações imprevisíveis,
exageradas e não controladas.
No caso da DB estas inflamações podem
afectar qualquer estrutura, as células imunitárias que se encontram por todo o
nosso corpo e em particular as que se localizam debaixo da pele e das mucosas,
reagem excessivamente aos mais diversos estímulos provocando estas inflamações.
É uma vasculite sistémica, inflamação dos vasos sanguíneos de pequeno e grande
calibre, de causa desconhecida e que possui maior incidência nos países que
pertenciam à Rota da Seda. Não é contagiosa e caracteriza-se principalmente
pelo aparecimento de úlceras orais e/ou genitais recorrentes, inflamação dos
olhos (uveíte) e lesões cutâneas. Também pode afetar as articulações, todo o
tipo de vasos sanguíneos, pulmões, sistema nervoso central e trato digestivo.
É importante consciencializar o publico
em geral, educando-o e dando a conhecer a história das pessoas reais e as suas
lutas diárias para vencer os obstáculos que vão cruzando os seus caminhos.
No âmbito do dia mundial da doença de
Behçet, o qual se celebra no dia 20 de maio, o Núcleo da doença de Behçet
da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas (LPCDR) deixa alguns
testemunhos de doentes.
Mara, tem 51 anos e foi diagnosticada em 2009. Nunca tinha tido sinais da doença até então.
“O meu diagnóstico foi a pior prenda de
natal que recebi.
Um risco num olho, foi assim que começou. Como tinha um cão, imaginei que fosse
um pêlo. Sem irritação, sem comichão ou vermelhidão. Apenas um risco. Como
incomodava, depois de um dia de trabalho, lá fui para as urgências. Para ficar
assustada, bastou uma carta lacrada e um encaminhar para o hospital a um
determinado médico, oftalmologista que, pasme - me eu achei que era
louco. Com o aparelho nos olhos perguntou por aftas, por nódoas negras,
por dores em sítios que nem imaginava pudessem doer.
Passados dez anos, aprendi o que é uma vasculite, o que são tratamentos
imuno-supressores. Aprendi um linguajar técnico por procurar saber o que é essa
doença e porquê de me ter escolhido a mim. Deixei de ter uma doença e passei a
ter um síndroma. O síndroma resume o que nós, pacientes e não doentes somos:
uma constelação de incidências.
Porque tomar banho custa. Usar peças de roupa, como meias ou cuecas, custa.
Sapatos, dias há que choramos só de pensar. Dormir? Luxo. Luxo porque a pele, o
maior órgão do corpo humano está recheado de veias e, pasmem, uma vasculite é o
inflamar de todo o sistema circulatório. Conseguem imaginar?
Imaginem chorar com um beijo dos vossos filhos. Imaginem agarrar um garfo a
ranger os dentes. Agora, imaginem o algodão que não engana.... e até esse nos
faz doer.Tudo deve ser controlado. Imaginem só.
Um risco num olho. Um conjunto de incidências. Porque não somos doentes.
Nem pacientes.
Porque dias há que não queremos ser raros apenas ter paciência para chegar ao
fim do dia e pedir para que amanhã seja um outro dia. Melhor. Menos mau.”
Inês
“Eu costumo dizer que ter esta doença é ter a sensação de o corpo ser um grande hematoma.
É isso que sinto, que tenho o corpo todo pisado, que uma coisa básica como: tomar banho, espalhar o creme de corpo, deitar o corpo no colchão, é estar a carregar numa pisadura "hematoma" e que é mais fácil dizer o que não me dói do que aquilo que me está causar desconforto...
Mas nós DB já estamos habituados, as pessoas quando ouvem isso pensam que estamos a exagerar...
Mas não...
É verdade!
É acordar de manhã mais dorida do que quando fui dormir...
É saber que vai melhorar ao longo do dia (por causa da medicação) mas que depois volta tudo ao mesmo.”
Isabel,
teve sintomas toda a sua vida. Foi diagnosticada em 2018.
“Aos 6 anos fui diagnosticada com
reumatismo agudo e fiz um tratamento longo com injeções diárias. Aos 11 anos
estive de cama 6 meses, com diagnóstico de hepatite B. Entretanto, sempre
fiquei muito cansada, por tudo e por nada, e, quando me deitava, as dores nas pernas eram
intensas.
Andei toda a vida em médicos e ninguém
sabia o que eu tinha.
Em 2014, comecei a ter infeções, febres,
dores articulares fortíssimas e os calores da PCR (proteína C reativa)
altíssimos. Fiz exames para despiste de reumatismo e da hepatite B (já tinha 42
anos) e o resultado foi negativo: nunca tive nada disso.
Entretanto, a minha condição física e de
saúde decaiu e ninguém sabia do que se tratava. Pensei, em desespero: ou sou
hipocondríaca ou é mau olhado!
Não acreditando nisso, cheguei , em
desespero, a pensar ir a uma bruxa...
Entretanto, os problemas articulares e
as cirurgias ortopédicas começaram. Surgem úlceras genitais sem diagnóstico
ginecológico e as aftas na boca aumentam terrivelmente.
Já em 2018, julho, começo a ter crises
de aftas non stop (30 aftas na boca - lingua, céu da boca, gengivas, garganta)
e derrames articulares nas mãos.
Dias depois, acordo, num domingo, a ver
mal, a ver manchas negras volantes.
Fiquei entrevada todo esse mês de
agosto.
Nas urgências de oftalmologia do S. João
fui referenciada para as autoimunes, com consulta ainda para agosto (30).
Foi-me diagnosticada a doença de Behçet.
Tomo as doses máximas de colchicina e imuran. Vejo mal e as dores articulares e
o cansaço excessivo mantém-se. A visão continua a ser afetada.
Sou obrigada a desenvolver atividade
profissional como se fosse uma pessoa normal, a ser produtiva e competitiva.
Behçet é uma doença silenciosa. E quando
diagnosticada, muitas vezes é invisível. Mas as dores são permanentes, a
dificuldade em mexer as articulações de manhã obriga-me a acordar às 6.30 da
manhã para dar aulas às 9.30 (e vivo a 5 minutos de carro do local de
trabalho).
É claro que, para além de acordar já
cansada, às 14. 30h já não aguento e a sensação que tenho é de ja ser
meia-noite.”
Mariana, 39 anos.
Lida com a doença de Behçet há 24 anos,
deixou quase de ver do olho esquerdo numa aula de matemática, foi às urgências.
Pasmem-se, o médico disse que era grave mas que não sabia o que era.
Foi o principio de um turbilhão que
entrou na sua vida de adolescente. A partir desse dia a vida nunc amais foi a
mesma. Vieram as aftas que mal a deixavam comer, as ulceras genitais, as lesões
na pele e as dores nas articulações que a impediam de fazer desporto. Fez
incontáveis exames e análises, tomou cortisona, imunossupressores e outros
medicamentos agressivos para controlar as crises… foram muitos sintomas ao
mesmo tempo e o diagnóstico foi rápido para a a altura, no espaço de alguns
meses, depois de correr muitos médicos e de gastar rios de dinheiro, veio o
diagnóstico de DB.
Com tudo isto as faltas à escola, o
afastamento da vida social, o ganho de peso, os problemas com a medicação, os
internamentos e as crises constates. A dor, a dificuldade em ver e a incerteza
do futuro passou a fazer parte da sua vida e da vida da sua família.
O tempo foi passando, os sintomas
também, uns mais ligeiros outros mais graves até ao surgimento de uma complicação
neurológica que pode estar ou não ligada à doença… só incertezas e
desconhecido. Mais um internamento. Mais medicamento novos a juntar aos que já
toma desde os quinze anos. Mais um susto, mais uma luta, mais um ano perdido na
faculdade… agora é no sistema nervoso central, o liquido que envolve o cérebro
está a acumular a pressionar o nervo óptico e o cérebro, hipertensão
intra-craniana.
As dores de cabeça duram meses,
tonturas, vómitos, falta de visão… é necessário realizar exames invasivos,
punções lombares, tomar medicação que tem muitos efeitos secundários. Mais uma
vez nada que não se ultrapasse.
As sequelas vão ficando, principalmente
ao nível da visão, mas com o tempo as coisas vão melhorando, com algumas crises
agudas pelo meio. Este problema até já estava esquecido até que numa consulta
de oftalmologia se identifica um edema na papila. Mais um internamento. O
aumento da pressão intra-craniana desta vez não melhora com medicação, só com
uma cirurgia para colocar um shunt que drenasse o liquido através de um cateter
para a cavidade abdominal. A primeira cirurgia falha, a segunda também… à
terceira é de vez… não foi. Na quarta cirurgia fizeram uma abordagem diferente,
desta vez colocaram uma válvula programável que drena o liquido diretamente do
cérebro para o abdómen através de um catéter… resultou
finalmente. Acordou, as dores diminuíram… a visão melhorou o
possível com o passar do tempo… o susto passou… até ao próximo…
“Sinto que o Behçet faz parte de mim,
sei que sem ele eu seria uma pessoa diferente, teria percorrido outros
caminhos. Não me lembro o que é viver sem dor e receio do que virá no dia
seguinte. Com isto não deixo de viver, de trabalhar, de viajar… nem que para
isso tenha que desencantar forças sabe-se lá de onde. Quando todos os outros
estão em baixo, muitas vezes sou eu a levantá-los e a empurrar o carro.“
Ana, 45 anos. O Behçet entrou na sua
vida aos 34 anos.
“Madrugada de 13 de Dezembro 2008,
acordei com a mesma enxaqueca, só que com uma grande diferença: queria ver as
horas e não conseguia, pois ela tinha me cegado.
Foi assustador!
Não sabia o que fazer, a enxaqueca era
terrível mas o não conseguir ver nem sei descrever...
Fui internada, mas não chegaram logo ao
diagnóstico.
Tive meningite, problemas graves de pele
muitas aftas na bocais.
Perdi o andar e o equilíbrio.
Só nós é que conseguimos perceber o
quanto é difícil certos dias.
Hoje consigo fazer uma vida normal
porque recuperei 15% de visão e escrevo com o auxílio de uma lupa. Faço tudo
sozinha, inclusive vou à rua sozinha. As pessoas só notam quando utilizo a lupa
para ler ou escrever.
Quando apareceu a Behçet tinha 34 anos,
hoje tenho 45 e tudo mudou, mas uma coisa é certa quando a Behçet chegou eu já
cá estava, por isso passamos a ser as duas raras mas vou tentar vencer te
Behçet.”
Joana, 34 anos. Toda a vida teve
sintomas, mas só foi diagnosticada com 21 anos.
“Imagine aquele abacaxi docinho e
sumarento a olhar para si, mesmo a pedir-lhe uma dentada que o vai saciar de
prazer. Você trinca, saboreia e consola-se. E, no fim, aquela afta na ponta da
língua vai aborrecer por cinco longos dias. Mas compensou pela frescura do
abacaxi não faltam produtos no mercado que acelerem o processo de cicatrização.
Agora imagine que você não come o
abacaxi. E que na verdade, até se abstém dos frutos secos, do açúcar, do pão,
da manteiga, do vinho... e mesmo assim, tem aftas. Só que não é uma na ponta da
língua. São vinte, são enormes e espalham-se pela boca toda. E pela garganta. E
por todo o sistema digestivo. E, não raras vezes, nos genitais. Olhe... e até
no olho!
Agora imagine que esta não é a pior parte. Imagine que o corpo dói e não sabe porquê.
Portanto, não consegue evitar as dores com prevenção.
Decide ir ao médico e diz que o corpo lhe dói. O médico responde-lhe que
descanse. Você descansa e as dores persistem. Vai ao médico que prescreve
análises. Os resultados são vagos. “Pode ser tanta coisa...” E durante todo
este processo, a vida continua. Você tem que sair todos os dias da cama para ir
trabalhar, para tratar dos filhos, para lidar com os mesmíssimos problemas do
dia a dia que a pessoa da afta do abacaxi. E quando deita a cabeça em cima do
braço e se queixa de dores, ninguém acredita. Porque, por vergonha ou por
pudor, você não vai mostrar as crateras que tem na parte interior da bochecha.
Ou da vagina. E ninguém sabe que as suas articulações estão inflamadas nem que
você não dorme há dias por nem arranjar uma posição confortável que o deixe
descansar.
Quando finalmente o médico acerta no diagnóstico, chega a hora de tentar
acertar na medicação. Somos todos diferentes. Temos todos sintomas diferentes.
É que as síndromes são tão peculiares que não afectam todos da mesma forma. E,
no entanto, nascemos todos com ela. Não adquirimos. Não prevemos. Não
prevenimos. Somos assim. E a medicação provoca insónias, diarreias, mau estar,
excesso de peso, anorexia e já nem sabe se está melhor com a medicação ou sem
ela.
Ter Doença de Behçet é desejar ter uma pequenina afta na ponta da língua por
termos comido uma fatia de abacaxi fresquinha naquele dia de calor.
E assim que se sente quem sofre com a
Doença de Behçet: raríssimo. E quem é raro, normalmente está só.”
Apesar de todas as batalhas e
dificuldades, estas pessoas de nomes fictícios, mas com histórias reais,
uniram-se devido a uma doença reumática auto-imune, pouco conhecida e ainda
menos compreendida: a doença de Behçet, constituindo assim o Núcleo da LPCDR, o
qual visa dar voz a quem sofre desta patologia.
Informar é importante... Procure sempre esclarecimentos junto do seu Médico assistente.